Certo dia entrei numa agência bancária para abrir uma conta. Um dos gerentes de atendimento veio fazer a minha ficha. Quando chegou ao item Profissão e eu respondi "ilustrador", o rosto do rapaz se abriu num sorriso. Confesso que aquilo me deixou lisonjeado. Afinal, o mais comum é que as pessoas perguntem "o quê?" ou peçam para repetir. Ali estava alguém que sabia do que eu estava falando.
Mas meu entusiasmo durou pouco. A pergunta seguinte do jovem gerente foi uma ducha gelada na minha auto-estima:
– Quanto o senhor cobra pra lustrar uns móveis pra mim?
Pois é. Lá se ia o meu suposto prestígio profissional para o ralo.
– É "ilustrador". Tem um "I" na frente. – expliquei.
– Ah, não. O senhor falou "lustrador".
Teimoso, o rapaz. Era como se ele tivesse se apresentado como "gerente de banco" e eu entendesse "tenente de branco". E insistisse que ele é quem teria errado na apresentação. Coisas da arrogância humana.
Tive vontade de dar algumas informações a ele, fazer alguns comentários. Só para esclarecer. Ou devo dizer "Só para ilustrar?"
Eu poderia dizer que, quando ele era pequeno, todas, ou quase todas, as caixas de brinquedo que ele tinha eram desenhadas por ilustradores. Aliás, continuam sendo. A boneca com que a filha dele brinca tem uma aparência que foi dada por algum ilustrador. E os bichinhos fofinhos que decoram o quarto dela também. Sem falar nos personagens de desenhos animados, que viram figurinhas, cards, mochilas e lençóis. Todos criados por ilustradores.
Aquela estampa na camiseta que ele usa quando vai pescar com os amigos foi criada por quem? Por algum ilustrador. Assim como as figuras do baralho que ele usa pra jogar um poquerzinho com a turma. E o estampado do vestido da sua mulher?
Quando ele abre o jornal de manhã vê logo uma charge, feita por outro ilustrador. Do mesmo modo, a abertura da matéria do segundo caderno tem lá sua ilustração. Depois ele dá uma olhadinha nas tiras de quadrinhos. Desenhadas por quem? Uma passada rápida pelo horóscopo, em que ele não acredita, mas por via das dúvidas... Vai direto ao seu signo, guiado pelas ilustrações.
Talvez eu devesse recordar que o apartamento em que ele mora foi comprado antes de ser construído, ou seja, antes que existisse. Mas ele sabia como ia ficar, porque no folheto imobiliário havia uma bela perspectiva ilustrada. E o carro que ele dirige foi desenhado por projetistas que tiveram, entre outras tarefas, que estabelecer a aparência do veículo, através de uma ilustração. Para abastecer o carro, ele vai a um posto que tem por símbolo um tigre, criado por um ilustrador. Por falar em veículos, eu poderia informá-lo de que o nome "jeep" foi uma homenagem a um personagem de história em quadrinhos, coadjuvante do Popeye. Mais ilustração.
Na lanchonete em que ele faz uma refeição rápida, o símbolo é um palhaço. Ilustrado, é claro. E aquela enxurrada de coelhinhos quando chega a Páscoa? Papai Noel, o bom velhinho, foi criado por um ilustrador. Alguém ainda se lembra de São Nicolau?
Eu poderia lembrar que quando ele pega na locadora o "Tudo sobre minha mãe", do Almodovar, a ilustração não está só no cartaz do filme. Está presente também na cenografia, nos figurinos e principalmente no storyboard que orienta as tomadas de cena. Nos Estados Unidos, com a escassez de roteiros originais para cinema, uma das fontes a que se tem recorrido são as histórias em quadrinhos, com seus personagens visualmente desenvolvidos por vários ilustradores.
As embalagens no supermercado, o desenho na xícara de porcelana ou no bordado antigo, o manual do cortador de grama, o livro de anatomia em que o médico dele estudou, o livro infantil em que sua filha aprendeu a ler ou o didático que ela agora usa na escola, as pessoas que falam "My name is Mary" na apostila do curso de inglês que ele faz à noite, o folheto da campanha contra o dengue (o artigo é masculino mesmo, revisor) que ele recebeu na rua, o selo que ele cola na carta, as imagens nas notas de dinheiro, a tatuagem da sua irmã mais nova em local não muito visto... Eu poderia falar um bocado da presença da ilustração em nossas vidas, desde que alguém resolveu narrar com desenhos uma caçada de bisão na parede de uma caverna.
Mas achei melhor não dizer nada. Ele não parecia nem um pouco interessado. Acho que o que mais queria, mais até do que abrir a minha conta, era resolver o problema dos seus móveis (projetados por algum desenhista). Não tinha, ao contrário do leitor que me acompanhou até aqui, o menor interesse em se tornar uma pessoa um pouco mais ilustrada.
Maurício Veneza é ilustrador e autor de mais de vinte livros para crianças e jovens. e-mail: mauricioveneza@ig.com.br
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